12 setembro 2014

Setembro

Sentado no banco, quase imóvel
crescem galhos do teu peito, daqueles que quebram ao toque.
Não gemes, existes apenas
como se fosse corriqueiro
alguém ter galhos secos a sair do corpo.

Tens o pensamento noutro lado,
sem consciência que o tempo é agora
e não antes ou depois.

Não sei que árvore serás
imaginava-te transformado num castanheiro ou num carvalho,
qualquer coisa imponente mas,
aí sentado, pareces tão frágil,
sem folhas, nem frutos,
só galhos secos a dobrarem a alma.

29 junho 2014

Hoje sonhei contigo.

O mesmo som frio do copo vazio bate no metal.
A promessa de 10 segundos de calor.
Já não é o calor, nem a companhia.
A esta hora o café é apenas um corredor vazio, mesas de um lado mal encostadas a meia parede de azulejos, balcão do outro.
A mulher gorda descasca batatas para a sopa do almoço e, a seguir, lava pernas de frango e faz o tempêro.
São 7 horas.
Chega uma caixa de bolos de fabrico duvidoso, excessivamente brilhantes.
O rapaz liga a televisão, suspensa por cima da máquina do tabaco.
O tempêro do frango dá-me a volta ao estomâgo, vou à porta.

O céu carregado promete chuva e o chapéu ficou em casa.
Que se foda.
A chuva, o chapéu, a televisão, as batatas descascadas, o tempêro do frango.

Vi a mulher a sair da casa de banho. Anda a custo e recomeça (penso se terá lavado as mãos).
Reparo no intervalo desconfortável entre o botão e o início do fecho da saia. Número errado. Tudo errado. O padrão, a cor, o material, o corpo.
E eu.
Nem sei o que faço aqui, só que tento preencher-me com o que vejo para me manter ocupado.
Talvez devesse dormir mais para os dias passarem depressa mas nunca fui de dormir, nem de pequeno. Cansava-me o tempo perdido, as horas deitado, demasiada quietude, a vida a passar por mim.

Hoje vou ao cemitério onde deixei o meu pai há 6 meses.
Há 6 meses e um dia falámos ao telefone, combinámos um almoço, o meu irmão não podia, seriamos só nós. Pensei em falar-lhe de ti.
Nunca falámos muito da nossa vida, assim muito a sério, mas de ti iria falar-lhe. Sei que sim. Mas não houve almoço a dois.
E agora há estas visitas onde parece que já passou muito tempo mas… parece que o tempo não passa e não cura.
Visitas onde falo o que não falei ou o que há para falar que ainda não existia.

Hoje sonhei contigo, estavas a mudar o óleo ao carro e manchaste a camisa. Ficaste aflito porque não saía e a mãe ía ficar zangada. Como se uma mancha de óleo ou uma camisa valessem alguma coisa.
Hoje sonhei contigo, eu ainda era pequeno e seguravas a bicicleta, no quintal dos avós, para eu não cair nas curvas. Eu virava sempre demasiado o volante.
Hoje não sonhei mas dei comigo a pôr uma garrafa de água no frigorífico, só porque o tempo aqueceu e sei que gostas da água fresca quando chegas a casa.
Tenho medo de me esquecer de coisas simples, como a tua voz.

Hoje vou ao cemitério onde está o meu pai.
O melhor é beber um café e pôr-me a caminho.
Antes que chova.

05 junho 2014

Lusco-fusco.

Diante de mim uma serra.
Final de dia, céu limpo, luz clara.
Consigo ver, muitos metros abaixo, o caminho onde hei-de passar, mas sei que primeiro terei de fazer as 365 curvas a pé.

Não posso cortar a direito.
Fujo de alguma coisa, não me lembro de quê.
Ainda está sol, estou cansado.
Um homem vem dizer-me que é melhor ir
e entrega-me um saco plástico com pão e maçãs.
Penso que não vou aguentar mais este peso, mas guardo o pensamento e aceito.
Começo a andar com a firme convicção que matei alguém e que deixei para trás quem ainda precisava de mim.
Com tanto fora do lugar, lembro-me duma frase que li:
"Hoje ou amanhã morremos todos."
[Ilustração: "Black Wolf". Autor não identificado.]

02 junho 2014

A mulher com braços de luz.

Raramente saía à noite.
De dia procurava refugiar-se na sombra e vestia mangas compridas, mesmo em dias de sol.
Mas não havia sido sempre assim.
A mulher com braços de luz perdera um filho no colo.
De início, uma mudança quase imperceptivel, uma transparência na pele, a leveza de perder matéria a compensar o peso no coração.
Pensava que podia ser apenas uma questão de equilibrio, como nos pratos de uma balança.
Mas em pouco tempo a pele desapareceu e conseguia ver, com clareza, músculos, veias, sangue, ossos e, através deles, o mundo filtrado por essa rotina de quem carrega o veneno gerado no corpo para o purificar com a urgência possível.
A visão dessas trocas tornava-a mais consciente da respiração, dos batimentos cardíacos e, numa dimensão microscópica, dessa invenção a que chamamos tempo quando não temos tempo para nada.
A mulher com braços de luz já não media o tempo, esperava apenas.

19 abril 2014

Guardar.


























Somos armazéns.
Empilhamos caixas do que não conseguimos guardar em lado nenhum.
Às vezes cai tudo.

Cansamo-nos de varrer as mesmas palavras do chão, algumas ficam mal penduradas na falha da parede que não foi arranjada quando devia.
Não há orçamentação que aguente tanto rombo no coração.

Somos armazéns.
Deviamos organizar tudo, catalogar.
Ter um arquivo e um motor de pesquisa.
Não confundir.

Mas depois há o choro da noite, há o sol que nasce mais cedo do que estamos habituados.
Depois, há o poder da vida de quem nos seduz só por existir.

07 abril 2014

O vento não se agarra com as mãos.

O vento não se agarra com as mãos.
É como o amor ou a tristeza ou a saudade.
Inspira-se, enche-nos o peito, fica.
Em terras estéreis, varre-nos a alma e os olhos de pó.
Expande-se e corre nas veias.
Rebenta com o sono e as convenções ridículas.
Como a liberdade.